segunda-feira, 5 de abril de 2010

DISPUTA POR TERRA EM SANTA MARIA DA VITÓRIA - BAHIA

A TARDE

Domingo, 04 de abril de 2010


Cresce a tensão em disputa por terra em Santa Maria da Vitória
Pequenos produtores rurais e advogados brigam na Justiça por área de 30 mil hectares

MÍRIAM HERMES
Santa Maria da Vitória


Um conflito deflagrado há 30 anos e acirrado desde 2008 está tirando a paz de cerca de 400 famílias da zona rural de Santa Maria da Vitória, a 881 km de Salvador. O alvo da disputa, com nove processos na Justiça, é uma área aproximadamente de 30 mil hectares. De um lado, posseiros e pequenos produtores rurais que utilizam há mais de 100 anos o local denominado de fundo de pasto, para deixar o gado à solta. Em pontos diferentes dentro da área em questão existem nascentes perenes.

De outro lado, uma família de advogados que alega ter comprado a área de diversos lavradores e ser dona da vasta extensão de terras. De acordo com a agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Julita Abreu, esta área, além de servir para pastagem do rebanho, também é utilizada para a colheita de produtos naturais como frutos, cascas, sementes e raízes para alimentação e fins medicinais.

“O problema começou depois que este casal de advogados, Maria do Socorro Sobral Santos e Paulo de Oliveira Santos, chegou na cidade e começou a comprar pequenos pedaços de terra na região do cerrado de Santa Maria”, ressalta, acrescentando que a CPT vem atuando em defesa dos lavradores, principalmente com orientação jurídica. Ela destaca que, aos poucos, os acessos dos moradores à água e ao pasto foram sendo fechados, começando pela aguada do Jucurutu. “Quando cercaram a última aguada, no lugar conhecido como Poço de Dentro, os trabalhadores se revoltaram, cortaram a cerca e soltaram o gado”, salienta o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santa Maria da Vitória, João Sodré.

Ele destaca que, desde então, acontecem diversos confrontos, sendo o de maior repercussão o ocorrido em 28 de fevereiro deste ano. “Era domingo e a gente estava em grupo, procurando algumas cabeças de gado. Na estrada, nos deparamos com uma caminhonete e vimos que dentro dela estava o advogado Paulo Patrício (filho do casal mencionado acima) e mais algumas pessoas, sendo que vimos armas, que inclusive foram fotografadas”, afirma o produtor Elivaldo Alves, 48 anos, ressaltando que foram ameaçados de morte caso soltassem novamente o gado na área de litígio, e que tiros foram deflagrados contra eles, mas ninguém ficou ferido.

Queixa

No dia seguinte, o grupo procurou a Delegacia de Polícia para registrar uma ocorrência, quando descobriu que, durante a madrugada, os advogados Maria do Socorro Sobral Santos e Paulo de Oliveira Santos prestaram queixa contra os trabalhadores, acusando-os de invasão de propriedade e roubo. Segundo o advogado Paulo Patrício Sobral Santos, a versão dos trabalhadores não está correta. Ele diz que foi para a fazenda levar a feira do caseiro e que estava com um amigo que, “por acaso, estava com uma arma no carro”.

Paulo Patrício se defende afirmando que os lavradores estavam armados e apresenta uma foto de um vaqueiro mascarado, de costas, com um revólver na mão, que afirma ter sido feita na ocasião. Apesar de não identificar ninguém, esta e outras fotos estão anexadas no processo contra os pequenos produtores. O episódio mobilizou o ouvidor Agrário Nacional e presidente da Comissão Nacional de Combate à Violência no Campo, desembargador Gercino José da Silva Filho, que pediu providências ao governo estadual para acabar com a tensão na área.


Liminar a favor de advogados proíbe ameaça e esbulho



Os lavradores dizem que o casal de advogados Maria do Socorro Sobral Santos e Paulo de Oliveira Santos está respaldado em liminar concedida, em setembro do ano passado, pelo juiz substituto Eduardo Nostrani Simão, ordenando que os réus “se abstenham de ameaçar, turbar ou esbulhar a posse dos autores, sob pena de multa fixa de R$ 50 mil”. A liminar é referente a uma Ação de Interdito Proibitório movida contra os produtores rurais desde abril de 2008. Este tipo de ação jurídica é usado em situações onde o direito de propriedade está sendo ameaçado, com riscos para os donos.

Como garantia para o processo, o magistrado solicitou da Agência de Defesa Agropecuária da Bahia (Adab), o bloqueio de até 100 reses por produtor. O juiz alega que esta é uma prática comum em situações idênticas e serviu para manter a paz no local, e que não dá direito aos autores do processo de invadir a terra dos posseiros e pequenos proprietários. Por criticar a decisão do juiz em documento encaminhado a diversas autoridades estaduais e nacionais, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santa Maria da Vitória, João Sodré, e a agente da Pastoral da Terra, Marilene Matos, ficaram presos por 30 horas na semana passada.

Conforme Eduardo Nostrani Simão, ele se sentiu coagido na prática do seu exercício funcional, o que está caracterizado no Artigo 344 do Código Penal, além de considerar o texto “um crime contra a honra”.

Retirada

O medo de morrer já afastou da área de conflito famílias nativas do lugar, segundo a agente da CPT Albetânia Santos. “Alguns venderam as terras a preços irrisórios e deixaram a região, indo morar nas periferias das cidades”, diz. Ela acrescenta que algumas pessoas morreram neste período “supostamente porque não suportaram a dor de perder um lugar que elas sempre conheceram como de uso de todos”. O trabalhador rural Valdivino Neri de Souza Filho, 42, afirma que há 20 anos anda com medo. Ele produz mandioca, batata e tem animais em 25 hectares.




Lavradores dizem que área sempre foi de uso comum



Um dos homens mais velhos do lugar, Faustino Moreira dos Santos, 99 anos, afirma que “depois que começou esta disputa, este lugar já não é o mesmo dos meus pais e avós, que sempre moraram aqui e viveram em paz”. Ele confirma que o local sempre foi de uso comum, “para soltar o gado na seca, pegar lenha para fazer comida, tirar as frutas como pequi e cajuí, bem como remédios naturais de casca, raízes e folhas”.

A lavradora Berenice Souza, 37 anos, diz que tem vontade de ir embora. “Toda vez que meu marido, meu pai, irmãos e amigos saem, a gente reza para Deus ajudar que nada aconteça. O pior é que nós somos o lado fraco e já fomos acusados de muita coisa que não fizemos”. Conforme o lavrador Alcione Pereira, 51 anos, “Agora o povo perdeu a coragem. A gente tem medo de morrer”.

Ação

Para identificar os verdadeiros proprietários das terras e o tamanho exato de cada propriedade, a área em conflito está sendo alvo de uma Ação Discriminatória Administrativa Rural, reiniciada em campo na semana passada por prepostos da Coordenação de Desenvolvimento Agrário da Bahia (CDA), vinculada à Secretaria da Agricultura, Irrigação e Reforma Agrária. Segundo o procurador jurídico do Estado Estácio Dourado, “o processo foi iniciado em 2008, mas nossa equipe foi impedida de agir por pessoas armadas”. Ele destaca que foi feita ocorrência policial e um pedido de alvará para que a Justiça autorizasse o trabalho, o que só ocorreu agora.

Três comissões estão trabalhando no cadastramento das famílias, na medição topográfica e na identificação dos documentos de propriedade. “Vamos conhecer todas as retificações cartoriais e pesquisar profundamente a cadeia sucessória de cada área. Com isso, vamos separar o público (terras devolutas), do particular”, afirma. O procurador diz ainda que se tudo correr normalmente, num prazo entre 90 a 120 dias o trabalho estará concluído.

A advogada Maria do Socorro Sobral Santos, que junto com o marido, Paulo de Oliveira Santos, reivindica a posse das terras, nega que homens sob o comando da sua família estejam ameaçando os trabalhadores rurais. A família, diz ela, discorda da realização da Ação Discriminatória Administrativa Rural que está em curso. “Somente vamos aceitar uma Ação Discriminatória Judicial, porque não confiamos na CDA e, como advogados, acreditamos na Justiça”. Ela se queixa que está sendo vítima de perseguição política e que os trabalhadores rurais estão sendo manipulados.




Fundo de pasto é área comum



O fundo de pasto é uma área de uso comum, de terras devolutas (que são do Estado).
Nela, os produtores, que moram nas proximidades, soltam os animais em tempos de pouca chuva. Essa prática é tão antiga quanto a história da ocupação do interior.
Por manter a vegetação intacta, a prática é considerada importante para a preservação dos biomas.



Terras do conflito têm 400 famílias



A área do conflito em Santa Maria da Vitória engloba as comunidades de Jacurutu, Mutum, Poço do Meio, Água Quente, Brejinho do Gerais, Salobro, Jatobá, Curral Velho, Pedra Preta, Olhos d’Água da Barra e Quatis, que dá nome à fazenda dos latifundiários. Cerca de 400 famílias de pequenos produtores rurais estão envolvidas no caso.

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